domingo, 13 de março de 2011

Dignidade Humana: Conceito base da ética e dos Direitos Humanos

Paulo César Carbonari

Ocupar-se da promoção e da proteção dos direitos humanos é trabalhar em vista de traduzir para o cotidiano da humanidade, em sua pluralidade e diversidade históricas, as condições para fazer com que a dignidade humana seja entendida como ponto de partida inarredável e princípio orientador das ações. Realizar progressivamente, sem admitir retrocessos, a partir desta base, as conformações e os arranjos sociais e políticos que oportunizem a realização e implementação efetiva dos direitos humanos é o desafio básico daqueles que efetivamente querem um mundo onde haja espaço e tempo oportunos para a afirmação da humanidade. Queremos introduzir um debate sobre a importância dos direitos humanos, refletidos eticamente, tendo como base a idéia de dignidade humana.
Para atingirmos nosso objetivo começamos com um debate sobre a natureza da reflexão que queremos fazer. Ou seja, discutir em que medida a ética, como reflexão filosófica tem condições de aportar elementos para estabelecer a dignidade humana como elemento de fundo dos direitos humanos. Em seguida, passamos a estabelecer a dignidade humana como centralidade do debate sobre direitos humanos. Ao final, extrairemos algumas conclusões na perspectiva histórica. 
1. O lugar da ética[3] 
A filosofia primeira, como unidade da razão ultimamente fundada, implica o reconhecimento da validade intersubjetiva das normas morais como exigência para o exercício da racionalidade como tal no caminho de afirmação de todo e qualquer tipo de conhecimento válido e com sentido. Nela está implicado o dever de ser racional, já que a racionalidade conta com o intransponível da argumentação, sempre regrada publicamente[4]. Como se pode perceber, perseguiremos nosso objetivo, neste ponto, seguindo a proposta da ética do discurso, na apresentação de Karl-Otto Apel.
Argumentar, participar da comunidade de comunicação, não é resultado de uma decisão subjetiva, de um ato de fé, ou de uma constatação empiricamente condicionada. Argumentar é condição transcendental de possibilidade tanto da compreensão de eventuais decisões subjetivas, de atos de fé e também de consideração de toda e qualquer condição empírica. O fato de que argumentamos – empiricamente condicionante – não fundamenta as normas da argumentação. Aceitá-lo livremente é condição necessária, mas não suficiente da validade das normas. Portanto, o reconhecimento da argumentação e do acordo ultimamente fundado é condição que se confirma suficientemente pelo processo de reflexão transcendental. Não é um fato a ser demonstrado, e sim a ser reconhecido como desde sempre presente no processo racional[5].
A reconstrução das condições da razão prática é um exercício comunicativo que não pode abrir mão do a priori da argumentação[6]. O reconhecimento do a priori da argumentação implica o reconhecimento do a priori prático da participação (tomar parte) no processo de seu estabelecimento, rompendo-se, dessa forma como o solipsismo metódico na razão prática. O dever de cumprir a norma básica não depende, dessa forma, de uma decisão de vontade, ou de uma vontade reta. Depende do reconhecimento do que já está implicado no ato de propor uma norma que seja justificada. Em última análise, mesmo o ato de refutar a necessidade da justificação de uma norma básica, é ele mesmo um exercício de argumentação e, como tal, precisa pressupor as condições da argumentação, entre as quais está a norma ética básica – sem o que, resta-lhe, como ao cético, cair em contradição performativa. A questão da justificação da norma não é insensata, a não ser que se tenha desistido eo ipso de argumentar contra ou a favor dela – relembrando Aristóteles, tornando-se uma planta e não de um argumentante.
A fundamentação desse processo há de seguir um modelo de fundamentação reflexiva. Importante notar de início, que se pretende fundamentar uma norma moral básica e não um sistema de moralidade. Isto porque, como mostraremos, a própria norma implica a possibilidade de respeito a vários sistemas, contanto que fundem seu sentido último na norma universalmente reconhecida. Está implicada aqui, portanto, a necessidade de um fundamento obrigatório da validade da norma ética básica e não de um argumento capaz de obrigar a uma pessoa a reforçar voluntariamente a norma cuja validade já seja considerada indiscutível. Não se trata de fundar a necessidade de seguir uma norma básica, mas de mostrar que o seguimento de qualquer norma, de modo particular da norma básica, implica a necessidade obrigatória de que ela seja válida e, por isso, ultimamente fundada.
A norma ética básica estabelece que somente são eticamente relevantes as pretensões humanas que puderem ser universalizadas mediante um acordo ultimamente fundado através da
argumentação racional, que tem como objetivo a formação solidária da vontade[7]. Daí que, conclui Apel: 
“As subjetivas decisões de consciência de cada um, exigidas pela tradição cristã, secularizada no liberalismo e no existencialismo, são agora mediadas pela exigência de validade intersubjetiva a priori – de modo a cada um reconhecer, desde logo, a argumentação pública como explicação de todos os possíveis critérios de validade, e, assim, também da formação racional da vontade”[8] .  
Imediatamente, em conseqüência dessa formulação, Apel afirma que: “Entender o princípio aqui apresentado implica, sem dúvida, ao mesmo tempo, reconhecer que pouco se consegue com a simples proposição do princípio, se não se conseguir cumprir as tarefas de longo prazo propostas junto com o princípio”[9]. Esta questão introduz uma limitação do princípio (da norma) ética básica. A limitação consiste que mesmo aquele que tiver plena compreensão do princípio moral não pode imediatamente tomar parte de uma comunidade (real) de comunicação, visto que permanece vinculado à sua real posição e situação social, que o leva a assumir responsabilidades morais específicas. É preciso notar, no entanto, que esta carência de base material, que joga o princípio num aparente idealismo, na realidade, encerra uma dialética (aquém) do idealismo e do materialismo. Nas palavras de Apel:  
“Pois, quem argumenta, sempre já pressupõe duas coisas: primeiramente, uma comunidade de comunicação real, da qual ele mesmo se tornou membro através de um processo de socialização; e, em segundo lugar, uma comunidade de comunicação ideal que, em princípio, estaria em condições de entender adequadamente o sentido de seus argumentos e de avaliar definitivamente sua verdade”[10]
A aparente limitação do princípio encerra, então, uma dialética que compõe a estrutura transcendental do a priori da argumentação. Encarar a situação de assimetria e de relativismo da comunidade real é uma condição de possibilidade para pensar o princípio e para pretender realizá-lo. Trata-se de entender que no próprio princípio a priori está implicada a necessidade de realização histórica das condições do discurso, da argumentação.
É partindo dessa exigência (histórica, diríamos) de toda a argumentação que Apel chega ao que chama de princípios reguladores básicos para a estratégia duradoura de ação moral de cada homem. Trata-se do que também é chamado de princípio de complementação à norma básica da ética. Na Transformação, Apel o formula da seguinte maneira: “em primeiro lugar, se deve tratar, em todo agir e deixar de agir, de garantir a sobrevivência da espécie humana, como também da comunidade de comunicação real; e em segundo lugar, de concretizar, na comunidade real, a comunidade de comunicação ideal”[11]. A relação entre os dois aspectos implicados é, segundo Apel, a seguinte: “O primeiro objetivo é condição indispensável do segundo: e o segundo objetivo confere ao primeiro o seu sentido – sentido que já está antecipado em cada argumento”[12]. O que no primeiro parece conservador, em realidade deixa de sê-lo já que seu sentido está exatamente em permitir a realização da comunidade ideal. Ou seja, não será  destruindo os homens, sua situação histórica, que se criarão as condições para a realização da comunidade ideal; antes, é condição para a realização da comunidade ideal reconhecer a situação histórica. Apel tem aqui ante os olhos explicitamente a problemática externa no sentido de que as conseqüências técnico-científicas apontam exatamente para a destruição das condições de sobrevida da humanidade, com dignidade, como ameaça real à comunidade real. Daí que, é possível compreender claramente a importância de levar a sério a situação, não como dado absoluto, mas como componente que precisa ser transformado em vista de melhores condições. A condição de igualdade dos participantes do discurso argumentativo, exigida pela comunidade ideal, implica reconhecer a assimetria histórica e moralmente trabalhar para sua superação em vista da realização de condições simétricas também na história. Neste sentido, a comunidade ideal não é um mero postulado, ou uma reserva de nossas melhores intenções como humanidade; assim como a comunidade real não é o reservatório da resistência à toda colonização sistemática por si só. Ambas se completam dialeticamente no sentido de uma contradição que precisa ser suportada na perspectiva da sua superação histórica como longo caminho de realização. O suportar adquire aqui, o sentido de não pretender uma síntese unificadora de ambas, mas de compreender que, sem tê-las em conta e sem levá-las a sério não se pode pretender qualquer modificação, nem mesmo se pode justificar qualquer ação moralmente significativa. A validade de qualquer ação moral se encerra, portanto, na obrigação de reconhecer que ela somente pode ter sentido se puder ser universalizada num processo de formação solidária da vontade, num processo intersubjetivo de formação de consenso na comunidade de comunicação.  
2. Dignidade humana, conceito base da ética e dos direitos humanos
O estabelecimento de uma norma universalmente válida, tentativa empreendida pela ética, não sem grandes problemas, é também, de alguma forma, a tentativa que se configura como necessária para o estabelecimento dos direitos humanos como universais. Neste sentido, direitos humanos se configuram como conteúdo normativo de uma ética universalmente válida. É claro que o tema direitos humanos não encerra somente este aspecto, talvez o mais difícil de ser estabelecido, mas também, desdobramentos de natureza jurídica e política, que apenas apontamos e que não haveremos de tratar com profundidade aqui. Em nosso entendimento, sem entrar na polêmica jurídico-política, da universalidade, indivisibilidade e interdependência dos direitos humanos, queremos por a questão em termos éticos. Daí que, entendemos que a dignidade humana é a base fundamental, conversível em norma de ética em termos de conteúdo, o que significa dizer que, neste sentido, os direitos humanos, entendidos, eticamente, como a garantia da dignidade humana, se configuram em conteúdo fundamental de uma ética universalmente válida.
Sustentamos esta compreensão no entendimento de que a noção de direitos humanos possui uma unidade normativa interna que se funda na dignidade igual de cada ser humano como sujeito moral, como sujeito jurídico, como sujeito político e como sujeito social. O reconhecimento desta unidade normativa encontra eco reflexivamente, até porque, a construção de qualquer ordenamento, seja ele jurídico, político ou social tem por base sempre a garantia de condições para que o ser humano tenha lugar central e intransponível. Esta unidade normativa cria condições tanto para orientar a construção dos arranjos históricos de sua efetivação quanto, reversamente, para a crítica daqueles arranjos que não caminham concretamente na perspectiva de sua efetivação.
Discordando das teses liberais ou liberalizantes, afirmamos que os direitos humanos econômicos, sociais e culturais não estão hierarquicamente em posição inferior os direitos humanos civis e políticos. Eles estão em posição de equivalência. Estamos cansados de ter que suportar situações onde sucessivos governos justificam ditaduras dizendo que em sociedades profundamente assimétricas é justificável a redução das liberdades fundamentais em nome da garantia do progresso sócio-econômico. Ou então, que, mesmo pobres, é melhor vivermos em um tempo de garantia da liberdades básicas, o que nos dá a chance de entrar no campo competitivo do liberalismo e quiçá galgar postos de satisfação mais aprimorada das demandas humanas, sempre individualmente. Isto significa dizer que tratar de direitos humanos é tratar de todos os direitos humanos, dos direitos humanos civis, políticos, ecoômicos, sociais e culturais.
Esta posição implica reconhecer que não há liberdade que possa ser exercida sem um  espaço social de solidariedade. Até porque, como confirma Fraling: “Seres humanos são seres materiais e necessitam de bens materiais para sobreviver. Sem a satisfação de necessidades econômicas básicas não se torna possível a existência da pessoa em liberdade, moldando a sua existência”[13]. Ou seja, a garantia de satisfação dos direitos humanos implica seu tratamento integral, o que também está em jogo quando falamos de seu reconhecimento como universais. Ou seja, todos os direitos humanos tem a pretensão de ser universais. Evidentemente que o modo de realização histórica de uns e outros direitos ganha contornos diversos. No entanto, privilegiar uns ou outros significaria abrir mão do princípio básico da dignidade humana.
A universalidade é o anseio profundo dos atos humanos mais genuínos. Agimos com vistas ao reconhecimento, por todos, de que nossa ação é a melhor, a mais justificada. Mas, conversar sobre universalidade é deveras muito difícil, visto que implica numa questão muito complexa, a diversidade. Enfim, encerra um problema espinhoso que é o de estabelecer o que, efetivamente, está em condições de ser reconhecido como universal e se isto implica, necessariamente abrir mão do particular, de alguma forma o problema que identificamos na questão ética.
Traduzindo a questão em termos históricos, não poucos países, grupos e nações do mundo levaram muito tempo para reconhecer a universalidade dos direitos humanos e outros ainda não a reconhecem, justificando que ela representa o ideal de vida não da humanidade como tal, mas do modo de vida ocidental e capitalista, não se adequando, portanto, ao modo de vida próprio de tais grupos, países ou nações. Com este problema concreto a luta dos direitos humanos tem convivido ao longo dos anos.
 
A Conferência de Viena[14] parece ter chegado a uma formulação um pouco mais satisfatória sobre o assunto. Segundo ela, os contextos locais e históricos devem ser levados em conta. Isto significa que podem ser diferentes as formas de interpretação e mesmo de aplicação dos direitos fundamentais, de um lado, mas, é condição para que tal possa ser garantido, a necessidade do reconhecimento dos direitos fundamentais, entendidos como reguladores da ação. Ora, segundo a ONU, na idéia mesma de direitos humanos está guardada a idéia de respeito à diversidade e à pluralidade. Portanto, opor-se aos direitos humanos em nome da diversidade e da pluralidade, é, de certa forma, negá-las. Dito de outra forma, é para garantir a diversidade que um acordo básico é exigido: ao menos o de que todos precisamos respeitar as diferenças.
Ocorre que este acordo não pode ser um mero acomodamento de interesses, ou um pacto ao estilo hobbesiano, pela sobrevivência. Antes, pelo contrário, cremos que ele precisa ser um acordo fundado em razões justificadoras de sua manutenção e até, eventualmente, de sua modificação em nome de um acordo mais satisfatório para todos. Se nele não estiverem previstas todas as consequências, e se suas razões são não suficientemente fundadas, ele se revela incapaz de satisfazer a todos, havendo a necessidade de sua reformulação. Em suma, a garantia dos direitos humanos como direitos universais foge da postura essencialista, de um lado, que crê numa certa idéia de natureza humana a ser preservada e foge também, de outro, da postura contratualista, que os justificam no acerto de interesses. Aqui é que entra a idéia de dignidade humana como conteúdo base tanto para a constituição da ética, quanto como base dos direitos humanos. No entanto, mesmo esta idéia, ela há que se configurar como construção histórica, longe de posições essencialistas, naturalistas ou contratualistas.
Neste sentido, a justificação do direito não está noutro lugar senão numa gama complexa de razões que deverão se conjugar satisfatoriamente diversos aspectos e não há o que invocar que seja anterior ao ato de reconhecimento. Ou o reconhecimento se estabelece motivado suficientemente por razões comuns ou, então, ele será mera farsa que logo diante do primeiro conflito maior sucumbirá. Em outras palavras, só com motivos muito sérios e justificados é que seremos capazes de reconhecer os outros, a diversidade. E, esses motivos não podem ser privados. Eles têm que ser comuns aos motivos dos outros.
 
3. Cidadania, dimensão histórica da dignidade
 
O jurista brasileiro, Presidente da Corte Interamericana de Direitos Humanos, Dr. Antônio Augusto Cançado Trindade, em sua palestra na IV Conferência Nacional de Direitos Humanos, realizada em 1999, em Brasília, diz, neste contexto, que o grande desafio encontra-se em “situar a pessoa humana no centro de todo o processo de desenvolvimento, o que requer um espírito de maior solidariedade em cada sociedade nacional e a consciência de que a sorte de cada um está inexoravelmente ligada a sorte de todos”[15]. Em outras palavras, consiste em articular a idéia de cidadania em sentido amplo e que articule a diversidade das dimensões da vida humana, tendo como pano de fundo a dignidade humana.
Seguindo esta lógica, entendemos que os direitos humanos exigem, além dessa base fundacional, centrada na dignidade humana, uma base histórica para sua realização, em processo, em espaços sociais e políticos. Neste sentido, é que abrimos diálogo entre a idéia de uma norma universalmente válida configurada no princípio apeliano e a idéia dos direitos humanos, tendo na dignidade humana sua base fundamental. O mecanismo histórico, reconhecidamente em condições de permitir o avanço deste processo é o de uma sociedade democrática. Dessa forma, seguindo o raciocínio de Bielefield, democracia e direitos humanos andam abraçados da seguinte forma: 
“Com a metáfora do recíproco abraço queremos estabelecer a unidade normativa entre direitos humanos e democracia, na qual, concomitantemente e sem hierarquização, pode surgir uma diferenciação que não se constitui em diferença de princípios, mas que representa, isto sim, uma diferença de modo de realização do mesmo e inalienável princípio da mesma liberdade solidária. No momento em que se dissolver essa unidade de princípio de direitos humanos e democracia ou passar a haver relação de subordinação de um em relação ao outro, ambos perdem” [16]
Com isso queremos dizer que a unidade normativa dos direitos humanos e da democracia alcançam fundamento ético na dignidade humana, como construção histórica das condições de sua efetivação no seio de uma comunidade real, condicionada. Isto significa que o próprio conteúdo específico dos direitos humanos é construção histórica, fundada na dignidade humana, que também tem uma dimensão histórica, o intransponível de qualquer conteúdo possível que se possa agregar ao que se quer entender como direitos humanos, e que o seio histórico no qual estão as condições para sua construção é o de sociedades democráticas em sentido pleno, muito além, portanto, da mera formalidade da escolha de representações para os postos de poder.   


sexta-feira, 4 de fevereiro de 2011


Sexualidade e Direitos Humanos



Clara Silveira Belato (1)
Eduardo Baker Valls Pereira (2)

1. INTRODUÇÃO

O presente artigo se propõe a discutir alguns aspectos dos direitos humanos no que diz respeito à sexualidade. Para tal, sentimos a necessidade de nos colocar primeiramente as seguintes questões: O que seria a sexualidade? Que papel ela representa na sociedade e qual a sua relação com o Direito?
Conscientes de que não existe uma resposta única para tais questões, nem um conceito definido e universal que esgote todo o significado da palavra, escolhemos como referencial teórico a obra de Michel Foucault ‘História da Sexualidade, volume I’.
Em seguida, passamos ao exame de alguns mecanismos legais existentes que podem ser utilizados para a proteção dos direitos sexuais, tanto internacionalmente quanto nacionalmente, constatando que há, ainda, uma precariedade neste tipo de produção normativa nesse sentido.
Em seguida e por último, achamos oportuno trazer à tona alguns casos concretos, como projetos de lei e jurisprudências, para evidenciar hipóteses de proteção e de violação de direitos humanos e aprofundarmos um pouco mais o debate.

2. SEXUALIDADE OU SEXUALIDADES?

Procuremos entender melhor o que efetivamente está envolvido quando se fala na proteção e violação de direitos humanos no que diz respeito à sexualidade. Que sexualidades são essas que se busca proteger e às quais freqüentemente se discrimina?
As sexualidades, as condutas, as identidades recriminadas são as que se identificam ou que pelo menos por um bom tempo foram identificadas como desvios, perversões e doenças. Alguns comportamentos que ainda hoje são definidos como patologias pelo discurso médico, psicológico e jurídico. Buscamos respostas para entender qual a função que o discurso sobre essas sexualidades exerce dentro das relações de poder contemporâneas e qual seria a função do Direito nessa conjuntura.
Nosso ponto de partida é o discurso de uma teoria da repressão. Haveria uma repressão generalizada à sexualidade. Ela deveria então calar-se, omitir-se. Através da interdição ela seria condenada ao silêncio e à não existência. Seria esse o interesse ou objetivo nas relações de poder que se colocam, o mutismo e a repressão.
Foucault afirma que, ao contrário, nunca se falou tanto sobre a sexualidade. Nunca foi tão importante conhecê-la, falar sobre ela, descobri-la, confessá-la a duras penas. O sexo, ao longo dos últimos dois séculos, se ligou expressamente à noção de subjetividade, foi figura incorporada ao homem, de tal modo que ele não mais concebe a si mesmo sem ela. Para entender a si próprio, para ter acesso a seu corpo e a sua identidade o homem passou, através de uma construção histórica, a necessariamente ter que descobrir a “verdade” sobre sua sexualidade.
“É pelo sexo efetivamente, ponto imaginário fixado pelo dispositivo de sexualidade, que todos devem passar para ter acesso à sua própria inteligibilidade (já que ele é, ao mesmo tempo, o elemento oculto e o princípio produtor de sentido), à totalidade de seu corpo (pois ele é uma parte real e ameaçada desse corpo do qual constitui simbolicamente o todo), à sua identidade (já que ele alia a força de uma pulsão à singularidade de uma história) (...) Chegamos ao ponto de procurar nossa inteligibilidade naquilo que foi, durante tantos séculos, considerado como loucura; a plenitude de nosso corpo naquilo que, durante muito tempo, foi um estigma e como que a ferida nesse corpo; nossa identidade, naquilo que se percebia como obscuro impulso sem nome. Daí a importância que lhe atribuímos, o temor reverente com que o revestimos, a preocupação que temos de conhecê-lo. Daí o fato de ter se tornado, na escala dos séculos, mais importante do que nossa alma, mais importante do que nossa vida; e daí todos os enigmas do mundo nos parecerem tão leves comparados a esse segredo, minúsculo em cada um de nós, mas cuja densidade o torna mais grave do que todos. O pacto faustiano cuja tentação o dispositivo de sexualidade inscreveu em nós é, doravante, o seguinte: trocar a vida inteira pelo próprio sexo, pela verdade e a soberania do sexo. O sexo bem vale a morte.” (FOUCAULT, 2006, p. 169-170)
Para essa importância excessiva que passa a ter o sexo, contribuiu a discussão nos últimos séculos sobre a sexualidade. O sexo se tornou objeto do conhecimento, criou-se toda uma análise minuciosa e exaustiva sobre ele na Medicina, na Psicologia, na Jurisprudência, no âmbito administrativo e da política de Estado. Aos poucos foi confeccionada uma ciência do sexo.
Essa ciência sexual foi uma das construções fundamentais dos últimos dois séculos, fruto de uma mudança estrutural na sociedade. De uma sociedade em que o soberano tinha o poder de tirar a vida de seus súditos se passou a uma sociedade na qual o poder está focado na vida, e não na morte. O poder deve organizar e gerir a vida, e nesse sentido dois pólos de controle principais se desenvolveram. O controle sobre os corpos (através dos mecanismos de adestramento, disciplina e docilização dos mesmos, buscando a maior utilidade possível – o que é trabalhado na obra ‘Vigiar e Punir’ do autor) e o controle dos corpos como espécie, no sentido de organizar a sua função biológica e a questão populacional, através de critérios como natalidade, mortalidade, longevidade, e outros.
O sexo constitui um elemento fundamental, pois é o elo entre esses dois pólos de controle. E é através da análise desses mecanismos de poder que nós buscamos entender a relação entre direito e sexualidade.
A principal característica atribuída à sexualidade pelo discurso científico foi a sua capacidade eminentemente patológica. O sexo foi considerado como algo que, por suas características inerentes poderia ser acometido por doenças. Passou a ser vigiado por diversas instâncias, desde a sexualidade da criança, observada de perto pelos pais, pedagogos, pediatras e babás.
Do saber que foi construído, o que nos interessa para a discussão é a chamada psiquiatrização do prazer perverso. Isso implica, principalmente, no seguinte: o instinto sexual foi isolado, conceituado como instinto meramente biológico. Vincularam o sexo a uma finalidade reprodutiva, pois a lógica era ter o controle do corpo como espécie. Com isso, toda conduta que não se encaixasse nesse critério biológico, todo prazer que não tivesse utilidade, ou fosse um prazer estéril, foi classificada como distúrbio. Aí entram desde a sodomia até, por exemplo, a masturbação. É feita uma categorização dos indivíduos, uma especificação de acordo com sua “doença”, esse indivíduos que seriam os “perversos”, muitas vezes associados às doenças mentais.
Como tal, a Medicina estava disposta a oferecer tratamentos, buscando a “cura”, buscando a normalização. Essas sexualidades errantes, desviantes, improdutivas, cumprem uma função importante nesse sistema, embora não sejam desejadas, em tese, elas são estimuladas, pois são elas que justificam toda a intervenção normalizadora médico-clínica-psiquiátrica-legal-administrativa. Nesse contexto, poder e prazer não se anulam, funcionam numa estrutural espiral eterna.
No início essas pessoas eram isoladas nas clínicas, A “ciência” difundia, na época, a teoria da degenerescência: o perverso sempre tinha parentesco com doentes, e seus descendentes seriam raquíticos e estéreis. Sustentava-se a tese da hereditariedade. Com base nela sustentou-se a eugenia e o racismo de Estado, com inúmeras atrocidades cometidas e extensas violações aos direitos humanos.
A psicologia, que tem o mérito histórico de ter se oposto a essa lógica da hereditariedade, também cumpriu e cumpre sua função normalizadora. As confissões não são feitas apenas no ambiente clínico ou nos consultórios médicos, mas também nos divãs. O indivíduo sente-se liberto ao confessar-se e preso ao continuar silente. Na busca da verdade de seu sexo detalha seus desejos mais íntimos mas é o ouvinte, por ser o sexo considerado obscuro e fugidio que irá, além de julgá-lo, dizer-lhe qual é a sua verdade. É o psicólogo, portanto, que determinará para o indivíduo qual a verdade sobre sua sexualidade.
Falemos, finalmente, sobre o papel do Direito. O Direito não funciona, nesse contexto, como a lei que proíbe, que estabelece o lícito e o ilícito e impõe condutas e sanções. Embora nós apresentemos, mais adiante, alguns casos de leis de outros países que agem nesse sentido, acreditamos que pelo reduzido número de casos levados a juízo que elas possuem uma característica muito mais simbólica. Essa visão do Direito como interdição se relaciona com a tese de repressão generalizada da sexualidade.
Para Foucault a teoria da repressão é apenas um discurso para aceitarmos mais facilmente o poder. Se nos sentimos reprimidos, os mecanismos de poder que são mais sutis, mais amplos e mais criativos passam desapercebidos. Para ele, enxergar o poder apenas como interdição é enxergá-lo como algo extremamente limitado. O poder assim só poderia proibir, através da lei, dizer não, determinar o ilícito. Quando na verdade tem uma função positiva e construtiva nas subjetividades.
Numa sociedade em que as técnicas de poder se centram na vida, na saúde, na longevidade, o direito tem uma função normalizadora, se integra aos aparelhos médicos e administrativos para melhor regular a vida humana. Mas existe também a resistência, que possui um caráter plural tanto quanto o poder. Ela também parte da vida, reivindica a vida no que tem de fundamental, questiona, se manifesta, exige seus direitos e a legitimação de suas sexualidades como condição sine qua non para a dignidade humana, revertendo a situação, utilizando a linguagem médico-jurídica contra o poder. É aqui que entra a luta universal de diversos grupos pelo reconhecimento de seus direitos.
Essa intervenção do direito na vida possui, portanto, um caráter dúplice: enquanto classifica, determina, controla sob a jurisdição e a tutela estatal; enquanto reduz o sujeito ao nome e ao gênero que lhe atribui, bem como à sexualidade regrada que lhe impõe, também é questionado; subitamente se vê obrigado a proteger o que gostaria de normalizar; em seguida, conforma-se e normaliza.
Os movimentos, as pessoas, também pautam o direito: nele incluem suas sexualidades que este busca não admitir e não tutelar. E este, por sua vez, se apropria e a normaliza, contendo-a.
3. SEXUALIDADE COMO DIREITO HUMANO E O PLANO INTERNACIONAL

Em primeiro lugar, é importante deixar claro, no momento em que foi escrito o presente artigo, não há no plano internacional nenhum tratado que trate especificamente da questão da sexualidade. Por exemplo, não temos nenhum acordo internacional que proíba explicitamente a discriminação contra os homossexuais.
Entretanto isto não significa que exista uma absoluta lacuna no plano internacional. Exatamente tendo em vista as constantes violações de Direitos Humanos perpetradas contra esses grupos sociais, a Comissão Internacional de Juristas e o Serviço Internacional de Direitos Humanos, representando diversas organizações de defesa dos direitos humanos, elaboraram os chamados Princípios de Yogyakarta.
Os Princípios são o produto da reunião de vinte e nove especialistas na questão da sexualidade e Direitos Humanos, de vinte e cinco países diferentes, na Universidade Gadjah Mada, em Yogyakarta, Indonésia, em novembro de 2006. Os Princípios de Yogyakarta tratam da “aplicação da legislação internacional de Direitos Humanos em relação à orientação sexual e identidade de gênero”. (3)
Os Princípios, na verdade, não são em si novos. O que foi feito foi a resignificação de princípios já consagrados de Direitos Humanos, muitos desde a Declaração Universal dos Direitos Humanos, sobre o prisma da sexualidade. Dando uma nova dimensão aos Direitos Humanos já positivados na esfera internacional. Com isso, seria possível trabalhar esta temática no plano internacional – quiçá até na área de litígio internacional – mesmo frente à lacuna normativa existente.
O texto dos Princípios de Yogyakarta apresenta vinte e nove destes Direitos Humanos clássicos e mostra como a questão da orientação sexual e da identidade de gênero se encontram já protegidas por ela, o que não é objeto de consenso(4).
Seria demasiado exaustivo fazer uma análise de cada uma dos princípios, portanto selecionamos alguns que nos parecem proporcionar uma discussão relevante para apresentação.
Direito à Igualdade: Os Princípios de Yogyakarta relacionam esse direito ao da não-discriminação ao afirmar que
A discriminação com base na orientação sexual ou identidade de gênero inclui qualquer distinção, exclusão, restrição ou preferência baseada na orientação sexual ou identidade de gênero que tenha o objetivo ou efeito de anular ou prejudicar a igualdade perante a lei ou proteção igual da lei, ou o reconhecimento, gozo ou exercício, em base igualitária, de todos os direitos humanos e das liberdades fundamentais. (PRINCÍPIOS, p. 11-12)
Tal princípio pode ser lido como o veto principal da discussão acerca da orientação sexual e identidade de gênero, pois uma das grandes lutas destes grupos sociais é exatamente por um tratamento igual ao dispensados a, por exemplo, aos heterossexuais. Neste sentido, qualquer legislação que criminalize a atividade consensual entre pessoas do mesmo sexo deve ser revogada, pois afrontaria a igualdade de tratamento perante a lei protegida internacionalmente. Assim como o simples fato da lei proporcionar um tratamento mais restritivo a alguma minoria sexual constituiria uma violação ao princípio da igualdade.
Embora a noção de igualdade já parece conter tal exigência, o argumento utilizado por parte dos defensores de um tratamento desigual é que não se pode tratar os desiguais igualmente e que as minorias sexuais não estariam na mesma posição que os arranjos familiares tradicionais. O que o texto dos Princípios faz é dizer que tal fator não pode ser um critério para a criação de distinções e tal noção ainda não foi incorporada ao cenário internacional de maneira sólida. Por exemplo, se poderia citar a presença de leis anti-sodomia nos Estados Unidos.
Direito à Liberdade de Opinião e Expressão: Nesse sentido, nunca poderá uma pessoa ter seu direito à palavra tolhido pelo simples fato dela(e) ser homossexual ou transgênero ou por defender os direitos desses grupos.
Porém, um ponto muito importante levantado pelos Princípios é fato de que se deve garantir “que o exercício da liberdade de opinião e expressão não viole os direitos e liberdades das pessoas de orientações sexuais e identidade de gênero diversas” (idem, p. 26). O texto é aberto e não aponta especificamente para o tipo de restrição seria legítimo, porém uma interpretação possível seria no sentido de que manifestações que violem o direito à honra e à dignidade de pessoas em razão dos parâmetros acima expostos não estariam protegidas pela liberdade de expressão da mesma maneira que outras formas de manifestar-se.
Neste sentido, não se poderia defender abertamente que a homossexualidade é um absurdo e que todo homossexual deveria ser normalizado, pois isso estaria ferindo a honra e a dignidade de toda pessoa homossexual, direitos esses também protegidos pela normatividade internacional. Entretanto, o texto como foi redatado poderia dar margem à interpretação de que alguma espécie de censura prévia seria necessária, o que conflitaria com parte da normativa internacional acerca da liberdade de expressão, como por exemplo a Convenção Americana de Direitos Humanos, o que apenas reforça a noção de que tal temática ainda precisa e deve ser melhor trabalhada no cenário internacional.
Direito de Constituir Família: Essa talvez seja uma das questões mais controversas da questão da sexualidade e direitos humanos. Todos nós sabemos da forte resistência que existe na sociedade em relação ao reconhecimento de um conceito de família mais amplo, que inclua, por exemplo, as relação homoafetivas. Os Princípios nos dizem que:
Toda pessoa tem o direito de constituir uma família, independente de sua orientação sexual ou identidade de gênero. As famílias existem em diversas formas. Nenhuma família pode ser sujeita à discriminação com base na orientação sexual ou identidade de gênero de qualquer de seus membros. (idem, p. 29)
Nesse sentido, todos países deveriam reconhecer a legitimidade das uniões entre pessoas do mesmo sexo, dando a elas os mesmos direitos e possibilidades de arranjo familiar que a legislação dá para os casais heterossexuais, permitindo inclusive a adoção de crianças por esses casais.
É interessante apontar que diversos países do mundo já reconhecem o direito do homossexual de constituir família, principalmente nos últimos dez anos. Por exemplo, apesar de poucos países permitirem o casamento entre pessoas do mesmo sexo (Dinamarca, África do Sul, Espanha, Canáda, Bélgica e Holanda; por exemplo), mais de dez países admitem a união civil, também chamada de união estável, dentre eles: Irlanda, Eslovênia, França, Alemanha e Noruega.
Pela lista de direitos humanos elencadas acima e pela breve explicação da correlação entre alguns deles e o tema da sexualidade já ficou evidente que muitos desses direitos estão protegidos por diversos tratados internacionais. Isto que significa que se pode pleitear a garantia e a proteção da esfera dos mesmos relativa à sexualidade em juízo, seja no plano interno – no casos de tratados nos quais o Brasil é signatário –, seja no plano internacional – no caso dos sistemas internacionais de proteção de Direitos Humanos.
Neste sentido, por exemplo a Convenção Americana de Direitos Humanos apresenta um largo rol de direitos humanos que abordados pelos Princípios de Yogyakarta, o que significa que seria possível, em tese, trabalhar a questão dos direitos sexuais através do referido diploma.
Entretanto, cabe levar uma pequena ressalva. O artigo 27 declara que é “reconhecido o direito do homem e da mulher de contraírem casamento e fundarem uma família”, o que, a primeira vista, nos dá a impressão de estarmos diante de uma visão estritamente heterossexual do casamento e que outros arranjos familiares não estaria protegidos pela Convenção.
Uma possível saída interpretativa para a restrição imposta pela Convenção é admitir que a instituição do casamento só se refere à união entre pessoas de sexos diferentes, porém a família não precisa se resumir a isso. O ponto 1 do artigo 27 prevê a proteção da unidade familiar, não da família heterossexual, e família e casamento são dois institutos distintos. Logo, para que se posso proteger a família, enquanto “elemento natural e fundamental da sociedade”, é necessário reconhecer a diversidade de modelos familiares que existem, incluindo a união homoafetiva.
Portanto, para poder se efetivar esse dispositivo da Convenção Americana de Direitos Humanos seria necessária a criação em seus países signatário, incluindo no Brasil, formas alternativas de se permitir o florescimento e o reconhecimento de núcleo familiares diversos da tradicional família pai, mãe e filhos. Essa leitura não viola o texto da norma, pelo contrário, busca dar máxima efetividade ao seu conteúdo, ao mesmo tempo que a harmoniza com os demais princípios consagrados pelo pacto, como a da igualdade de tratamento perante à lei.

4. SEXUALIDADE COMO DIREITO HUMANO E O DIREITO BRASILEIRO
No que diz respeito à normatividade nacional, ainda não temos nenhuma lei federal que promova os direitos de gays, lésbicas, bissexuais e transgêneros. O casamento entre pessoas do mesmo sexo não é, ainda, expressamente regulamentado e nenhuma lei especifica claramente a discriminação baseada em orientação sexual ou identidade de gênero como uma violação dos Direitos Humanos. Todavia, isto não significa que o Direito Brasileiro não forneça nenhuma espécie de proteção nestes casos
Em primeiro lugar, tudo o que foi dito acima acerca da aplicação dos Princípios de Yogyakarta na esfera internacional pode perfeitamente ser utilizado no âmbito da legislação nacional. Todos os princípios presentes em Yogyakarta são protegidos de forma expressa pelo nosso ordenamento jurídico, principalmente pela nossa Constituição. Ademais, os tratados internacionais ratificados pelo Brasil também fazem parte do ordenamento jurídico nacional – como é o caso da Convenção Americana – e, portanto, podem ser utilizados internamente.
Por exemplo, o inciso IV do artigo 3º da Constituição diz que é objetivo fundamental da República Federativa do Brasil “promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação”. Assim como o inciso XLI do artigo 3 determina que “a lei punirá qualquer discriminação atentatória dos direitos e liberdades fundamentais” é evidente que a questão da sexualidade pode ser perfeitamente enquadrada nessas normas.
O caput do artigo 5º diz que: “Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza”, logo, aos homossexuais e transgêneros não pode ser dado um tratamento pior do que aquele reservado aos demais cidadãos, o que nos remete diretamente à questão do casamento, da adoção e da união estável; caso utilizemos a noção de direito à igualdade esboçada nos Princípios de Yogyakarta.
Tradicionalmente se entende que o casamento e a união estável entre pessoas do mesmo sexo é proibida no Brasil. O parágrafo 3º do artigo 226 diz que a união estável só se dá entre homem e mulher, o que impediria que casais homossexuais conseguissem ingressar nesse regime.
Quanto ao casamento, apesar da Constituição não dizer expressamente que só se limita a homem e mulher, o artigo 1.514 do Código Civil diz expressamente que esse instituto está reservado para homem e mulher. Sem querermos entrar no mérito da inconstitucionalidade do referido do dispositivo da lei cível, ou da tentativa de se explicar porque poderia se considerar inconstitucional o parágrafo 3º do artigo 226 da própria Constituição, podemos voltar um pouco no texto constitucional, para o caput do artigo 226.
Diz ele que: “A família, base da sociedade, tem especial proteção do Estado”. Ora, família e casamento, ou união estável, não se identificam, como já vimos. Existe família e diversidade familiar fora desses institutos e é dever do Estado, conforme se depreende da leitura do artigo acima, proteger esses núcleos familiares não convencionais. Portanto, mesmo que não se permita aos casais homossexuais contrair casamento ou união estável, o comando constitucional exigiria que o Estado criasse mecanismos que permitam a proteção dessas famílias.
O fato de uma família ser composta por dois homens não retira o dever de tutela do Estado, talvez pelo contrário. Pelo fato deste tipo arranjo familiar não possuir o mesmo grau de proteção legal por parte do Estado, além da questão da rejeição por parte da sociedade, é que o Estado dispense uma atenção especial a essa situação de vulnerabilidade, buscando formas efetivas de se resolver essa questão.
Nesse sentido, temos o Projeto de Lei 1.151 de 1995, da então deputada Marta Suplicy. Tal projeto buscou criar a figura da União Civil entre Pessoas do Mesmo Sexo, ou Parceria Civil Registrada, conforme o substitutivo proposto pelo então deputado Roberto Jefferson. Assim, aos homossexuais seria dada um novo instituto familiar, dando aos cônjuges proteção quanto à partilha de bens, herança, planos de saúde, direitos previdenciários, dentre outros direitos e deveres. Porém, o substitutivo do deputado Roberto Jefferson buscou impedir a adoção de crianças por parte de casais homossexuais, em total contramão em relação aos recentes avanços da jurisprudência.
Tal proposta, entretanto, é insuficiente. Ao criar uma classe especial de união para aqueles arranjos familiares não tradicionais, ainda não se estaria dando plena efetividade ao princípio da igualdade. Não se pode negar o avanço que representaria a regulação da união civil para os casais homossexuais, porém esta mesma proposta também demonstra que ao menos parte da sociedade ainda não estaria disposta a reconhecer as distintas formas familiares em pé de igualdade.
É importante notar que, apesar de tudo isso, parte da jurisprudência vem reconhecendo uniões estáveis entre pessoas do mesmo sexo, se valendo dos princípios constitucionais e métodos hermenêuticos tradicionais como a analogia.
Ademais das possibilidades de atualização via interpretação e projetos de lei, nós temos leis e normas que, de forma ainda um pouco tímida e restrita, dão proteção aos Direitos Humanos relativos à sexualidade. Por exemplo, no Estado do Rio de Janeiro nós temos a Lei Estadual 3.406 de 2000, que “estabelece penalidades aos estabelecimentos que discriminem pessoas em virtude de sua orientação sexual”. No Município do Rio de Janeiro nós temos a Lei Municipal 2.475 de 1996, que “determina sanções às Práticas Discriminatórias na Forma que Menciona e dá outras providências”, determinando que “Os estabelecimentos comerciais, industriais e repartições públicas municipais que discriminarem pessoas em virtude de sua orientação sexual, na forma do parágrafo 1o do art. 5º da Lei Orgânica do Município, sofrerão as sanções previstas nesta lei”, sanções estas que vão desde advertência até cassação de alvará, progressivamente. O parágrafo 1º do artigo 5º da Lei Orgânica do Município determina que “Ninguém será discriminado, prejudicado ou privilegiado em razão de (...) orientação sexual”, o que evidencia o entendimento de que a questão da sexualidade está compreendida dentro da problemática dos Direitos Humanos, tanto que o Título no qual se insere tal artigo se chama “Dos Princípios e Direitos Fundamentais” e todos nós sabemos da estreita relação entre Direitos Humanos e Direitos Fundamentais, sendo, de forma geral, os segundos a positivação dos primeiros.
Ainda no Rio de Janeiro, temos a Lei 3.786, graças a qual “os parceiros homossexuais passam a ser reconhecidos pelo mesmo estatuto dos companheiros em uniões estáveis homossexuais”, para questões previdenciárias. Na mesma linha, temos a Instrução Normativa nº 57 do INSS, que foi criada em reposta a uma ação judicial que determinou, no caso concreto, o mesmo direito previsto no seu artigo 20, que determina que:
“O companheiro ou a companheira homossexual de segurado inscrito no RGPS passa a integrar o rol dos dependentes e, desde que comprovada a união estável, concorrem, para fins de pensão por morte e de auxílio-reclusão, com os dependentes preferenciais de que trata o inciso I do art. 16 da Lei no 8.213, de 1991, independentemente da data do óbito, ou seja, mesmo tendo ocorrido anteriormente à data da decisão judicial proferida na Ação Civil Pública n. 2000.71.00.009347-0.”
Uma das leis que mais expressamente trata a questão da sexualidade e dos Direitos Humanos é a Lei Estadual 11.872 de 2002, promulgado no Estado do Rio Grande do Sul. Ele dispõe “sobre a promoção e reconhecimento da liberdade de orientação, prática, manifestação, identidade, preferência sexual” e expressamente declara que a Administração reconhece o respeito à igual dignidade da pessoa humana de todos os seus cidadãos, devendo para tanto, promover sua integração e reprimir os atos atentatórios a esta dignidade, especialmente toda forma de discriminação fundada na orientação, práticas, manifestação, identidade, preferências sexuais, exercidas dentro dos limites da liberdade de cada um e sem prejuízos a terceiros.
Em seguida a lei apresenta um rol exemplificativo de que tipos de conduta poderiam ser consideradas atentatórias à dignidade em razão de orientação sexual ou identidade de gênero e apresentando diversas sanções para os estabelecimentos nos quais tal atitude se deu. Além de prever diversos tipos de punição adaptadas ao porte e ao caráter público ou privado do estabelecimento violador. Se o caso se referir, por exemplo, a um servidor público, pode haver a exoneração do mesmo.
Se poderia recorrer a outros exemplos de legislação estadual ou municipal, porém o importante é ficar claro que estas são iniciativas isoladas e que abordam apenas questões específicas. Não há, ainda, um tratamento abrangente para questão e tal solução não poderia ser dada a nível local ou regional – seja pelo fato de que a organização normativa brasileira que restringe o tratamento de certas matérias ao nível federal, seja devido a ausência de vontade política por parte de alguns entes federados – fazendo com que a responsabilidade da União em formular políticas e práticas aplicáveis ao pais como um todo aumente de importância.
Neste sentido, temos os Programas Nacionais de Direitos Humanos. Em 2002, a Secretaria Especial de Direitos Humanos publicou a segunda versão do Programa Nacional de Direitos Humanos (PNDH) que deveria ter sido implementado com os recursos orçamentários previstos no Plano Plurianual de 2000-2003 e na lei orçamentária anual. O PNDH deveria servir também como pauta de discussão do Plano Plurianual 2004-2007, sendo que nesse último ano seria feita uma nova revisão do mesmo, que o que somente veio a ocorrer no final de 2009, sendo que o plano ainda está pendente de aprovação quando da redação deste artigo.
O programa de 2002 representou um significativo avanço em relação ao Programa anterior, em relação à temática da sexualidade, incluindo o tema da orientação sexual dentro da questão da garantia do Direito à Liberdade e as questões relativas a gays, lésbicas, travestis, transexuais e bissexuais dentro das problemáticas do Direito à Igualdade. Cabe aqui apresentar alguns dos pontos apresentados no programa mais relevantes para a nossa discussão:
“114. Propor emenda à Constituição Federal para incluir a garantia do direito à livre orientação sexual e a proibição da discriminação por orientação sexual.
“115. Apoiar a regulamentação da parceria civil registrada entre pessoas do mesmo sexo e a regulamentação da lei de redesignação de sexo e mudança de registro civil para transexuais.
“117. Excluir o termo ‘pederastia’ do Código Penal Militar.
“241. Implementar programas de prevenção e combate à violência contra os GLTTB, incluindo campanhas de esclarecimento e divulgação de informações relativas à legislação que garante seus direitos.
“242. Apoiar programas de capacitação de profissionais de educação, policiais, juízes e operadores do direto em geral para promover a compreensão e a consciência ética sobre as diferenças individuais e a eliminação dos estereótipos depreciativos com relação aos GLTTB.
“244. Apoiar a criação de instâncias especializadas de atendimento a casos de discriminação e violência contra GLTTB no Poder Judiciário, no Ministério Público e no sistema de segurança pública.”
Infelizmente, boa parte das diretrizes traçadas no plano em questão não produziram os resultados esperados. Por exemplo, podemos destacar que o Código Penal Militar não foi alterado e que ainda não há uma regulamentação para a parceria civil de pessoas do mesmo sexo.
Dois anos depois, em 2004, o Ministério da Saúde junto com a Co¬missão Provisória de Trabalho do Conselho Nacional de Combate à Discriminação da Secretaria Especial de Direitos Humanos publicou o documento “Brasil Sem Homofobia: Programa de Combate à Violência e à Discriminação contra GLTB e de Promoção da Cidadania Homossexual”.
O Programa apresenta uma longa lista de ações a serem desempenhadas e realizadas pelo Estado e pela sociedade. Isso porque, apesar da Secretaria Especial de Direitos Humanos da Presidência da República ser o órgão formalmente responsável pela implementação, articulação e avaliação da integralidade do Programa apresentado, “a responsabi¬lidade pelo combate à homofobia e pela promoção da cidadania de gays, lés¬bicas e transgêneros se estende a todos os órgãos públicos, federais, estaduais e municipais, assim como ao conjunto da sociedade brasileira” (COMISSÃO, p. 27).
Não é pertinente aqui pormenorizar as propostas do Programa, mas vamos apontar alguns pontos relevantes:
“Estabelecer e implantar estratégias de sensibilização dos operadores de Direito, assessorias legislativas e gestores de políticas públicas sobre os direitos dos homossexuais;
“Apoiar a criação da Convenção Interamericana de Direitos Sexuais e Re¬produtivos, em consulta permanente com a sociedade civil;
“Elaborar diretrizes que orientem os Sistemas de Ensino na implementação de ações que comprovem o respeito ao cidadão e à não-discriminação por orientação sexual;
“Discussão com vista na atualização dos protocolos relacionados às cirurgias de adequação sexual;
“Apoiar elaboração de uma agenda comum entre movimento negro e movimento de homossexuais e a realização de seminários, reuniões, ofici¬nas de trabalho sobre a temática do racismo e da homofobia.”
Mais recentemente assistimos à discussão em torno do PnDH 3, apresentado no final de 2009. O texto apresenta um objetivo estratégico em relação à orientação sexual e à identidade de gênero, como já fazia o PnDH 2. Infelizmente, a leitura do texto nos mostra que as pautas presentes são muito semelhantes as já desenhadas em 2004. Ademais, é importante destacar que o Programa mencionado se encontra sob intensa critica por parte de diversos setores da sociedade brasileira, como no que diz respeito à união civil de casais homossexuais . Em conseqüência, o Governo, no momento da redação deste artigo, acenava a possibilidade de alterar algumas das partes criticadas, o que poderia fragilizar ainda a parca proteção que o Programa dispensa à questão da sexualidade.
Destaca-se, ainda, que há questões que se repetem – como apoiar projeto de lei acerca da união civil entre pessoas do mesmo sexo – e retrocesso – o texto anterior apoiava a regulamentação da mudança no registro civil para transexuais e o presente texto apenas fala do uso no nome social.
Tal fato nos leva à questão dos transgêneros (chamados de transexuais pelo PnDH), último ponto a ser discutido neste trabalho. Tal temática comporta principalmente duas discussões: a cirurgia de adequação sexual e a mudança de nome e sexo no assento civil. Analisemos cada uma separadamente
O Conselho Federal de Medicina (CFM) possui competência, outorgada pela Lei nº 3.268, de 1957, para determinar quais procedimentos são éticos e quais não são. Na realização daqueles considerados antiéticos pelo Conselho, o médico poderá sofrer uma variedade de sanções administrativas, incluindo a cassação da sua licença médica. Durante a primeira metade dos anos 90, o CFM ainda considerava a operação de adequação de sexo como antiética(5), partindo da noção de que é ao médico é proibida a prática ou indicação de procedimentos médicos desnecessários ou proibidos pela legislação, de acordo com o Código de Ética Médica. O Conselho considerava a operação de adequação sexual crime tipificado no artigo 129, parágrafo 2º, inciso II, do Código Penal, ou seja, lesão corporal grave por “perda ou inutilização de membro, sentido ou função”.
Felizmente, em 1997, o CFM mudou sua posição com a edição da Resolução nº 1.482, que passou a considerar a cirurgia de adequação sexual como um “tratamento” adequado à transexualidade, estabelecendo uma série de critérios para que a pessoa possa ser submetida a tal cirurgia. Esse entendimento se sedimenta principalmente em dois dispositivos legais. O parágrafo 4º do artigo 199 da Constituição Federal, que prevê a remoção de “órgãos, tecidos e substâncias humanas para fins de transplante, pesquisa e tratamento” e o artigo 13 do nosso Código Civil que diz que “salvo por exigência médica, é defeso o ato de disposição do próprio corpo, quando importar diminuição permanente de integridade física, ou contrariar os bons costumes”. A partir dessas duas normas e do entendimento que “a cirurgia de adequação de sexo é uma solução terapêutica para um fenômeno psíquico específico” (BELATO; PEREIRA, p. 9) permite-se a cirurgia de adequação sexual, pois haveria um excludente de ilicitude, proveniente da lei cível e constitucional, para a conduta tipificada na norma penal.
Apesar de essa solução resolver, teoricamente(6), o problema prático, a resposta não parece de todo adequado. Isso porque se continua vendo a transexualidade como um distúrbio, algo a ser curado, daí a noção de tratamento, cura. Argumenta-se que se o transexual não passar pela operação ele poderá criar um quadro crônico de depressão, chegando até ao suicídio e à auto-mutilação. Logo, “dos males o menor”. A operação salva a integridade psíquica do transexual, porém reconhece seu próprio quadro psicológico como anormal e errado. Não nos aprofundaremos aqui nos inúmeros problemas dessa tese, algo que já foi, de certa forma, trabalhado na primeira parte desse texto.
Em seguida, temos a questão da mudança de nome e sexo do Registro Civil. É evidente a importância desse passo para que o transexual possa desfrutar plenamente de uma vida digna e normal. Caso seu nome continue correspondendo ao do seu sexo biológico originário, ele(a) continuará sendo vítima de agressões, humilhações e discriminações, o que não pode ser aceito. A Lei de Registros Públicos não permite expressamente a mudança de nome e sexo nos casos de cirurgia de adequação sexual. A lei é de 1973, logo fica evidente que não poderíamos esperar algo assim da mesma. Porém, há uma saída possível. Permitam-nos emprestar as palavras de um trabalho anterior de nossa lavra para apresentar uma possível solução:
O artigo 55, parágrafo único, da Lei 6.015 declara que os “oficiais do registro civil não registrarão prenomes suscetíveis de expor ao ridículo os seus portadores” e o artigo 57 da mesma lei postula que apenas “após audiência do Ministério Público, será permitida por sentença do juiz” a alteração posterior do nome, “somente por exceção e motivadamente”. Já encontramos um problema inicial, a lei só faz menção à exposição ao ridículo quando se refere ao momento do registro inicial do nome da pessoa, por outro lado, a mesma lei dá poderes ao juiz de efetuar tal alteração em caso excepcional e com motivos suficientes. Conforme encontramos em nossa pesquisa, a jurisprudência e a doutrina reconhecem o direito do requerente de mudar seu nome em caso de exposição ao ridículo, fato mais do que notório, já tendo sido objeto de reportagens na grande mídia. Sendo reconhecida como legítima a demanda acerca desses casos, considera-se, por conseqüência lógica e direta, que os casos de transexualidade também devem ter acesso ao mesmo direito, mas pretendemos aprofundar um pouco mais o tema.
Tendo em vista a falta de previsão legal expressa, contra ou a favor da questão, somos levados aos artigos 4º e 5º do Decreto-Lei nº. 4.657 de 1942, a “Lei” de Introdução ao Código Civil, que declaram que permitem ao interpretador da norma utilizar-se da analogia e princípios gerais de direito para resolver uma dada lacuna legal.
Podemos considerar que, atualmente, o artigo 55 da Lei de Registros Públicos serve para salvaguardar a dignidade da pessoa humana, que esse é seu fim social à luz do atual texto constitucional. Logo, da mesma forma que se tenta proteger o recém-nascido de futuras situações vexatórias, deve-se, por analogia, proteger o transexual da mesma situação, já que o juiz deve considerar o fim social da lei. Tal raciocínio é semelhante ao utilizado na questão dos nomes esdrúxulos.
Da mesma forma que o nome pode expor ao ridículo, o sexo que consta nos documentos legais do transexual também pode expô-lo a isso. Por isso, mesmo que não haja previsão legal para a mudança de sexo, acreditamos que se deve aplicar um raciocínio análogo àquele utilizado na mudança de nome no registro civil. Quanto a isso a jurisprudência diverge bastante: temos decisões que não permitem a mudança; decisões que permitem a mudança, desde que conste o termo transexual em locais diversos, tais como a Carteira de Identidade ou outros documentos utilizados publicamente; e, por fim, aquelas que permitem a mudança de sexo sem que a mesma fique notificada nos documentos de uso corrente. Tendo em vista a lógica utilizada para sustentar a necessidade da mudança, o respeito à dignidade da pessoa humana e seu direito à privacidade (ambas garantias constitucionais), a última solução nos parece mais condizente com as necessidades do transexual e com a realidade que ele irá enfrentar.
Contudo, a mudança deve constar no registro civil do operado ou operada, por razões de segurança jurídica(7) e para se preservar a função do registro civil, que é de relatar “fatos históricos da vida do indivíduo”. (idem, p. 5)
6. CONCLUSÃO
A questão da sexualidade já há muito tempo é objeto do poder do Estado e das instituições sociais. O corpo e a subjetividade, instância indissociáveis do homem, são constantemente trabalhados para se formar um determinado tipo de sexualidade. Mas o corpo e seu dono reagem e contra-fluxos surgem, reivindicando reconhecimento e construindo novas formas de sexualidade.
Na sociedade contemporânea a questão da sexualidade não pode ser corretamente analisada se não tivermos sempre em mente os Direitos Humanos. A autodeterminação, a liberdade e a não-discriminação são direitos fundamentais para que se possa ter uma visão acurada dessa questão. A luta por essas novas, e velhas, sexualidades é uma luta respaldada por todo o arcabouço jurídico construído em torno dos direitos individuais e coletivos de todo homem, mesmo que resignificados sobre essa nova ótica, e pela construção de direitos novos.
Não cabe ao Estado ou a nenhum grupo social ou de moralidade determinar como as pessoas lidarão com sua própria sexualidade. Todos devem ser tão livres quanto possível para construir a sua própria sexualidade, sem que haja imposição violenta de padrões de conduta ou de formas de pensar.
Todavia, necessariamente passamos pelo Direito ao tratar desta questão, portanto é importante destacar novamente a importância dos Princípios de Yogyakarta. Ao fazer esta releitura dos Direitos Humanos clássico, o trabalho realizado por esses especialistas instrumentaliza qualquer ativista da área de Direitos Humanos que queira militar nos temas relativos à sexualidade. Porém, não podemos nos satisfazer com isso. É muito importante que se consiga a aprovação de ao menos um tratado internacional que trate explicitamente da questão da sexualidade, por exemplo, proibindo a discriminação por motivos de orientação sexual. O valor simbólico da ratificação de tal acordo seria incontestável, representando a vitória de grupos sociais historicamente perseguidos e massacrados, como os gays, lésbicas e transgêneros, afirmando para todo o mundo que essa não é uma questão que possa ser mantida sob o arbítrio das soberanias nacionais e que se deve respeitar sim a diversidade sexual. Mas enquanto esse tempo não chega os Princípios de Yogyakarta podem nos ser muito úteis.
Gostaríamos de terminar com uma citação que acreditamos exprime o papel que os Direitos Humanos, e seu reconhecimento e defesa, deve desempenhar nessa luta:
“Em se tratando de direitos humanos, não há espaço para omissões.
“Os Estados se vêem confrontados ante uma escolha crucial: afirmar a universalidade dos direitos humanos ou (...) implicitamente endossar as constantes violações e abusos dos direitos humanos regularmente perpetrados contra as pessoas lésbicas, gays, bissexuais e transgêneros, nos diversos países e regiões de todo o mundo.
“Sabemos, de antemão, que para alguns países esta não será uma decisão fácil; contudo, a proteção aos direitos humanos requer coragem, integridade e liderança. (FISHER, p. 24)”

BIBLIOGRAFIA
BELATO, Clara; PEREIRA, Eduardo B. V. Transexualidade e direito brasileiro: uma visão panorâmica. In: II JORNADA CARIOCA DE INICIAÇÃO CIENTÍFICA, 2006. Rio de Janeiro: IBMEC, 2006.
BRANNEN, Daniel E.; Hanes, Richard C.. Supreme Court drama: cases that changed America. Canada: Elizabeth M. Shaw, 2001.
BRASIL. Secretaria de Estado de Direitos Humanos. Programa nacional de direitos humanos 2. Brasília: Ministério da Justiça, 2002.
Brasil. Secretaria Especial dos Direitos Humanos da Presidência da República. Programa nacional de Direitos Humanos (PnDH-3) ed. rev. Brasília : SEDH/Pr, 2010.
CONSELHO Nacional de Combate à Discriminação. Brasil sem homofobia: Programa de combate à violência e à discriminação contra GLTB e promoção da cidadania homossexual. Brasília : Ministério da Saúde, 2004.
FISHER, John (compilador). Resolução brasileira em direitos humanos e orientação sexual: um resumo com as principais informações para as delegações governamentais. [S.I.]: ARC International, [2004?]. Acesso em: 1 nov. 2007. Disponível em: .
FOUCAULT, Michel. A história da sexualidade: a vontade de saber. 17. ed. Rio de Janeiro: Graal, 2006. v. 1.
PRINCÍPIOS de Yogyakarta: princípios sobre a aplicação da legislação internacional de direitos humanos em relação à orientação sexual e identidade de gênero. [S.I.: s.n.], 2007. Acesso: 26 out. 2007. Disponível em: .
VIANNA, Adriana; LACERDA, Paula. Direitos e políticas sexuais: mapeamento e diagnóstico. Rio de Janeiro: CEPESC, 2004.
ZAMBRANO, Elizabeth et al. O direito à homoparentalidade: cartilha sobre as famílias constituídas por pais homossexuais. Porto Alegre: Instituto de Acesso à Justiça, 2006. Acesso em: 1 nov. 2007. Disponível em: .



(1). Estudante de Direito na Faculdade Ibmec/Faculdade de Direito Evandro Lins e Silva
(2). Estudante de Direito na Faculdade Ibmec/Faculdade de Direito Evandro Lins e Silva
(3). O nome do trabalho é exatamente “Princípios de Yogyakarta sobre a Aplicação da Legislação Internacional de Direitos Humanos em relação à Orientação Sexual e Identidade de Gênero”.
(4). Nesse sentido, basta ver que em torno de 90% da população brasileira que considera homossexualismo errado, conforme o estudo realizado por Alberto Carlos Almeida revela em seu livro “A Cabeça do Brasileiro”.
(5). Processo Consulta CFM nº 0617/90 – PC/CFM/Nº11/1991 e Processo Consulta CFM nº 0817/90 – PC/CFM/Nº12/1991, ambos disponíveis no sítio eletrônico da entidade
(6). Dizemos teoricamente pois uma contestação possível seria afirmar não ser competência do Conselho Federal de Medicina estipular o que é lícito ou ilícito, logo não importa o que suas resoluções digam, ele não pode criar um excludente de ilicitude. Porém, não é ele que cria o excludente. Ele já está na norma civil e constitucional, que são, porém, incompletas de conteúdo. O que é exigência médica ou tratamento médico só pode ser determinado pelos médicos, não faria sentido esperar que o legislador editasse portarias regulamentando quais procedimentos médicos se encaixam nos dois dispositivos citados acima.
(7). “É importante lembrar que os números dos documentos, tais como CPF e RG, do transexual continuam os mesmos, portanto, a segurança jurídica já estaria, ao menos em boa parte, salvaguardade através disso”. (idem, p. 9)

domingo, 2 de janeiro de 2011

México

Guerrero recebe terceira condenação no ano por violações de direitos humanos


Tatiana Félix *


Pela terceira vez, o estado de Guerrero, no México, é condenado pela Corte Interamericana de Direitos Humanos (CIDH) por causa das constantes violações de direitos humanos. Dia 20, a CIDH divulgou a mais recente sentença contra o Governo Mexicano, referente ao caso dos campesinos ecologistas Rodolfo Montiel e Teodoro Cabrera, que foram vítimas de prisão arbitrária e sofreram tortura em 1999, praticadas por membros do exército do país.

Para a CIDH, o México violou os direitos humanos de liberdade e integridade pessoal dos ativistas, além de também ter violado as garantias previstas em lei e a proteção judicial. Em virtude disso, o país recebeu como sentença, medidas que deverão ser executadas dentro de prazos estabelecidos pela Corte, para reparar o dano causado às vítimas e também para reverter as condições que ainda hoje permitem que graves violações de direitos humanos aconteçam.

Como parte da condenação, a Corte determinou que os atos de tortura sejam investigados, e que as vítimas recebam indenização pelos danos sofridos, além de assistência médica e psicológica.

A Corte também determinou que seja feita uma reforma na legislação militar, para excluir da competência da justiça militar os crimes relacionados com violações de direitos humanos. "A conclusão se aplica não apenas para casos de tortura, desaparecimento forçado e violação sexual, como a todas as violações de direitos humanos", ressaltou a CIDH

"O Estado mexicano deve adequar suas práticas atuais e fazê-las compatíveis com as mais altas normas de direitos humanos", expressou a Corte, se referindo aos casos em que as vítimas são obrigadas a confessar crimes que não cometeram.

Para pressionar o Governo mexicano, o Centro pela Justiça e o Direito Internacional (CEJIL) e outras organizações em defesa dos campesinos ecologistas exigem que as autoridades mexicanas cumpram a sentença. "O cumprimento integral da sentença, de maneira eficaz e de boa fé, é indispensável como mostra inequívoca do compromisso do Estado mexicano em matéria de direitos humanos", ressaltam.

Entenda o caso



Os ativistas Rodolfo Montiel e Teodoro Cabrera foram presos e sofreram torturas em 1999, por defensores ambientais. Apesar de terem sido libertados em novembro de 2001, a inocência das vítimas não foi reconhecida pelo Estado mexicano, que tampouco reconheceu ter violado os direitos humanos dos dois.

O caso foi apresentado à Comissão Interamericana de Direitos Humanos, que o admitiu em 2004. No entanto, devido às faltas de cumprimento por parte do governo mexicano, a Comissão apenas apresentou o caso para a Corte Interamericana em junho de 2009. Rodolfo Montiel durante um de seus depoimentos para a Corte, ressaltou a necessidade de proteger os ambientalistas e de se tomar providências para conter os abusos militares.

Depois de dez anos dos crimes cometidos pelos representantes do Estado contra os ambientalistas campesinos, governo e demais autoridades estão diante da possibilidade de por fim à injustiça que até agora continua afetando os campesinos ecologistas e suas famílias.

* Jornalista da Adital