sábado, 17 de julho de 2010


Não matarás 

No conhecido romance Crime e Castigo, Dostoievski põe em cena o tormento de um assassino dominado pela culpa. Seu protagonista agoniza de dor moral e acaba por entregar-se. O russo parecia, por sua vez, estar atormentado com a aurora de um novo tempo sem Deus: como fazer a culpa, a vergonha, o remorso entrar no coração dos homens? Como nos autovincular moralmente, sustentados apenas na ideia de uma autoconsciência presente, a mesma, em todos os homens?
A razão não pareceu, nesse século que nos separa, um substituto tão eficaz, do ponto de vista moral, quanto o temor a Deus. Temor travestido de amor. Nietzsche percebeu como poucos a enrascada em que nos metemos ao assassinar o próprio Deus. Não estaríamos jamais à altura do ato que praticamos, pois tiramos o eixo do mundo. Em dias recentes Woody Allen, no magnífico Match Point, coloca seu protagonista lendo Crime e Castigo, para, ao final, depois de tornado assassino, consentir intimamente com a sorte de não ter sido apanhado. Sutil ironia do gênio. Cita Dostoievski, no contrapé, para nos dizer que ele tinha mesmo razão. A morte de Deus é também a morte de uma certa ideia de homem, o que é capaz de sofrer com o mal que ele próprio pratica e de não suportar a dor moral que isso provoca.
Lembro de, na infância, quando ainda acreditava, imaginar o sofrimento atroz dos criminosos. Uma curiosidade mórbida me fazia imaginar o olhar dos assassinos, perdido, vagando entre os fantasmas de suas maldades. Nada podia ser pior do que isso, ser um assassino, tirar a vida de alguém. Na minha primeira visita ao presídio, o percurso de praxe das disciplinas de Sociologia do começo dos 80, pedi para ver um assassino. Queria ver seu olhar.
Hoje, depois de tantos casos terríveis de assassinato estampados pela TV, fico imaginando o que as crianças imaginam. Elas não precisam mais imaginar o olhar. Ele está lá, na maioria das vezes, firme, altivo, quase orgulhoso. O caso da vez é emblemático. Todas as conversas, entrevistas, editoriais, giram em torno do que o assassino, suspeito vá lá, vai deixar de ganhar, no montante de seu prejuízo econômico, na sua burrada, na sua estupidez, por assim dizer.
Por mais que se fale da hediondez do caso, que envolve cães de raça, ex-policial com ares fascistóides, narcotráfico, orgias, não há seguramente nenhuma incursão no aspecto moral da questão. Para substituir Deus e seus demônios, temos os neuro, os psi, os sociais, os culturais, mas o aspecto moral passa ao largo. Em filosofia moral costuma-se dizer que o “não matarás” é como que uma regra de ouro, presente em todas as culturas humanas. Só se pode matar sob condições bem estipuladas. O que vemos acontecendo ao nosso redor é a refutação mais rotunda dessa tese.

Mata-se cada vez mais, por qualquer motivo, banalmente, cotidianamente.

Mas continuo curiosa: gostaria de ver o olhar do “menor” que entregou o caso. Consta que ele está aterrorizado com o que viu, chora copiosamente nos depoimentos, vê o fantasma de Eliza. Não consegue conviver com o que fez. Também gostaria de saber se ele acredita em Deus. Se não, e sua confissão não é uma armação da quadrilha, estamos diante do único sujeito moral dessa estória. Ele sofre e não porque não vai estar na Copa de 2014.

Sandra Helena de Souza - Professora de Filosofia e Ética da Universidade de Fortaleza

3 comentários:

  1. Brilhante! Uma bela abordagem da tragédia vivida pela sociedade por meio do personagem antagonista que agora toma as manchetes dos jornais do país. O crime é a elaboração de um ego que não vê nada mais importante no mundo além de si.

    Os clubes têm de pensar melhor a formação psicológica e social de seus atletas, e fazê-los achar glória no que é vital para todos, a fraternidade.

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  2. Me lembro tanto de um dos meus mestres, Rolando Toro Araneda, e do sofrimento que ele tinha sempre quando ouvia falar de alguém que era assassinado, alguém que tinha sido morrido às mãos de alguém que não respeitava à Vida.

    Nunca nos lembramos disso nestes tempos tão doentes...

    um abraço
    jorge vicente

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  3. o mundo anda doente de amor. Vibremos para o melhor sempre!!!! claudia

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