sexta-feira, 30 de julho de 2010


PROCURA-SE ELISA
 Setembro de 1993. A adolescente italiana Elisa Claps é vista pela última vez quando se encaminhava à Igreja da Santissima Trindade em Potenza para encontrar Danilo Restivo, rapaz de vinte anos. conhecido por seu temperamento estranho e pela compulsão de cortar cachos de cabelo de mulheres à revelia das mesmas.
Logo após o encontro, Danilo foi a um pronto-socorro para suturar um corte profundo na mão. Afirmou que havia caído em um canteiro de obras logo após sair da igreja. Elisa...
O desaparecimento da jovem resulta em um inquérito pleno de contradições. O encontro de Danilo e Elisa na igreja é confirmado por todos, mas o destino da jovem permanece sem explicação. A igreja não foi periciada. Testemunhas, ameaçadas, mentiram. Um personagem alheio ao acontecimento, mas supostamente ligado à máfia, compareceu a todas as audiências. O pároco Don Domenico Sabia, conhecido como Don Mimi, não explicou o motivo pelo qual fechou a igreja logo após o desaparecimento da jovem, aliás, “equivocou-se” ao afirmar que a igreja não estava aberta aquele dia. O pai de Danilo usou sua influência de sobrinho de poderoso ministro da Democrazia Cristiana para impôr a lei do silêncio e afastar o filho dos fatos, de Potenza e da responsabilidade.
A investigação pelo desaparecimento encerrou com a condenação de Danilo por falso testemunho. Durante anos os familiares de Elisa buscaram a verdade, o corpo, mas só encontraram pistas falsas, a falta de apoio do clero e o silêncio da população de Potenza, cidade com quase setenta mil habitantes, na região da Basilicata no sul da Itália.
Março de 2010. Os restos mortais de Elisa Claps são encontrados no sótão da Igreja da Santíssima Trindade enquanto bombeiros faziam um trabalho de restauração por causa de uma infiltração no teto. Não estava cimentado ou desossado. Estava abandonado ainda com os restos de roupas que a jovem vestia no dia do desaparecimento e com os óculos sob algumas telhas junto a objetos velhos.
O desaparecimento é desarquivado e se transforma em inquérito de homicídio. Mas como investigar o crime após dezessete anos? Don Domenico Sabia morreu há dois anos. Danilo Restivo mora na Inglaterra onde é suspeito do assassinato de uma vizinha encontrada com o corpo mutilado e com dois cachos de cabelo nas mãos. Os jovens que testemunharam há dezessete anos aprenderam a conviver com as omissões e culpas. O clero permanece em contradições. Surge o boato que a presença do corpo de Elisa sobre o teto da igreja já era de conhecimento de alguns sacerdotes. Algumas evidências. O sótão não permaneceu fechado por todo este período. Mas quem teve acesso? Desde quando? Como? Respostas evasivas, talvez resguardadas pelo segredo de confissão.
Quando o tempo parecia ter soprado a história da jovem para o esquecimento, surge o corpo na mesma igreja em que ela foi vista pela última vez. A família de Elisa encontra um corpo para velar e o motivo do luto de tantos anos, mas os resultados da perícia causam ainda mais indignação.
As constatações técnicas são reveladoras: Elisa foi morta no interior da igreja com várias perfurações no corpo; cachos do seu cabelo foram cortados depois que ela já estava morta; um botão de tecido vermelho, semelhante ao que falta na vestimenta do padre falecido, foi encontrado sob o corpo, e resíduos de esperma de dois DNA diferentes estavam em um colchão velho ao lado do corpo.
Elisa é morta, não desaparecida. Mas... Por que Don Mimi, durante anos, afirmou ter perdido a chave do espaço sobre o teto da igreja sem deixar que ninguém tivesse acesso? Por que a família de Elisa foi impedida de realizar uma missa pela sua alma na igreja? Como um sacerdote pôde ministrar todos os sacramentos durante quinze anos sob os restos mortais? A igreja não estava profanada? Quem enviou as mensagens com as falsas informações? Por que foi tão convincente para a população de Potenza aceitar que a jovem de 16 anos tivesse fugido para o exterior? Por que todas as testemunhas mentiram? Medo? Conivência? Segredo de confissão? Impunidade?
Com o distanciamento do tempo, o desaparecimento das testemunhas e a atuação dos advogados, a verdade se encobriu para sempre e o que resta de certeza é a morte de uma jovem de 16 anos, apunhalada diversas vezes, e deixada sobre o teto de uma igreja como um objeto usado e sem serventia. Uma profanação da vida e da morte.
Junho de 2010. O desaparecimento de Eliza Samudio aparece na mídia a partir do encontro do seu filho de cinco meses na guarda de desconhecidos. O goleiro de um grande time de futebol brasileiro é o suposto pai do filho dela e o protagonista confirmado de uma trama macabra. Com um olhar distante e um quase sorriso nos lábios, insiste em afirmar que desconhece o paradeiro da jovem, apesar de estar evidente a estadia dela em sua casa no Rio de Janeiro e no sítio do goleiro em Minas Gerais.
Muito se especula. A vida da desaparecida é escancarada e a vítima é condenada pelo próprio desaparecimento. Novos enredos ganham a cena: a guarda do filho, a desestruturação familiar da vítima, “reincidência amorosa”, a prisão do irmão do goleiro por suspeita de estupro... Enquanto a farsa se desenvolve com as contradições dos envolvidos (empregados, primos, amigos de infância, mulher, namoradas, amantes) e no silêncio debochado do protagonista. Alguns personagens ganham destaques especiais: um menor usuário de drogas, um amigo estranhamento tatuado, um ex-policial e vários rottweiler esfomeados. Um espetáculo absurdo agravado com o jogo cênico dos advogados e investigadores. Falsas pistas, gravações clandestinas e testemunhas “equivocadas”. Não é necessário o corpo para perceber que Eliza está morta e não desparecida. E com Mércia, Mônica, Angela, Maria da Penha e tantas outras anônimas formará um mosaico de vítimas da violência contra a mulher.
Por ironia, o significado do nome Elisa ou Eliza, segundo a origem germânica, é mulher feliz. Por circuntâncias diversas, mas de forma trágica, Elisa Claps e Eliza Samudio não conseguiram realizar a acepção do nome e foram privadas da vida.

Helena Sut*

[*Helena Sut é escritora e cronista, autora dos livros Sonhos e Cicatrizes (narrativa bidimensional onde o Eu se teatraliza para abrigar o Outro), Beatriz Navegante e Confissões de uma Barriga, Todas as ovelhas são pardas (texto teatral), e Afinetes de Lapela. Acredita que a literatura é a única forma de costurar suas percepções e vivências – uma colcha de retalhos que muitas vezes não conforta, mas é a própria construção do significado no mundo.]


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